Crônica para Dona Nicota
Tatiana Belinky, ilustrada por Cris e Jean
Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê- lo aceitar tão insólita situação.
Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e - ora vejam! - ele respondeu com um sorriso ao sorriso da dona Nicota!
- Vem ficar aqui comigo - ela disse. - Você vai gostar. - E acrescentou, para minha surpresa, – Eu mesma vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.
Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu.
E durante vários dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela mão, a pé, até a escola e a sua sala.
E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma “aula particular”, em casa — para ele não se atrasar no programa.
Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo...
O Ricardinho adorava a dona Nicota - e não era para menos.
Dona Nicota era a mais perfeita e linda encarnação da "professora primária" ideal - a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real - com competência, dedicação, compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para o futuro cidadão.
Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje?
Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los nesta "crônica-tributo" a dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora “montessoriana” e um grande ser humano.
Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo.
E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.
Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu.
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